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Considerações sobre a violência política de gênero

5 de novembro de 2021

EXTRAÍDO ORIGINALMENTE DO CONJUR

Como já tivemos oportunidade de observar, a Lei Maria da Penha é um microssistema jurídico que foi criado com o intuito de proteger a mulher vítima de violência doméstica, dando concretude ao ideal constitucional de respeito à dignidade da pessoa humana e de busca pela equidade. O dispositivo legal elenca formas de violência doméstica e familiar contra as mulheres (física, psicológica, sexual, patrimonial e moral), não limitando o legislador.

O artigo 7º da Lei Maria da Penha, ao veicular o rol de violências, utiliza a expressão “entre outras”, escancarando, assim, a possibilidade de serem reconhecidas outras modalidades de violações aos direitos das mulheres. Foi o que fez a Lei nº 14.192, de 4/8/2021, ao estabelecer normas para prevenir, reprimir e combater a violência política contra a mulher. Fez-se inserir no Código Eleitoral o artigo 326-B, criminalizando-se a violência política de gênero. Confira-se:

“Artigo 326-B — Assediar, constranger, humilhar, perseguir ou ameaçar, por qualquer meio, candidata a cargo eletivo ou detentora de mandato eletivo, utilizando-se de menosprezo ou discriminação à condição de mulher ou à sua cor, raça ou etnia, com a finalidade de impedir ou de dificultar a sua campanha eleitoral ou o desempenho de seu mandato eletivo.
Pena — reclusão, de um a quatro anos, e multa.
Parágrafo único. Aumenta-se a pena em um terço, se o crime é cometido contra mulher:
I — gestante;
II — maior de 60 anos;
III — com deficiência”.

Além disso, o artigo 327 do Código Eleitoral criou duas novas hipóteses de aumento de pena para alguns crimes que, se cometidos com menosprezo ou discriminação à condição de mulher ou à sua cor, raça ou etnia ou por meio da internet ou de rede social ou com transmissão em tempo real poderão ser punidos com pena aumentada de um terço até a metade (artigos 324, 325 e 326).

Pensemos então sobre a violência política de gênero, não apenas sob a perspectiva penal, mas também sob a ótica social e feminina desse fenômeno.

No mês de dezembro de 2020, foram amplamente divulgadas na imprensa cenas de um parlamentar, em plena sessão da Assembleia Legislativa de São Paulo, que tocava o corpo de uma colega deputada. O fato, inadmissível, demonstra que a violência baseada no gênero não encontra limites nem mesmo em ambientes de poder.

As agressões contra mulheres na política ocorrem, na maior parte das vezes, não em forma de agressões físicas, mas vão desde interrupções em suas falas, ameaças e xingamentos às violações de natureza sexual, questionamentos acerca da vida privada e comentários inadequados sobre suas aparências e modo de se vestir, perpassando pela desqualificação das habilidades da mulher e até mesmo na desproporcionalidade de repasse de fundo partidário. A violência política de gênero pode ser definida, segundo o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, como a agressão física, psicológica, econômica, simbólica ou sexual contra a mulher, com a finalidade de impedir ou restringir o acesso e exercício de funções públicas e/ou induzi-la a tomar decisões contrárias à sua vontade.

Na medida em que nossa democracia é representativa, a violência política de gênero, além de constituir uma agressão à pessoa, é preocupante, visto dificultar que pautas relacionadas aos direitos das mulheres sejam discutidas no ambiente político, atrasando progressos extremamente necessários.

Aqui, importante conceituar, ainda que em linhas gerais, a democracia representativa. Nessa forma de democracia, que foi adotada pelo Brasil por meio de votação, são escolhidos nossos representantes, normalmente, aqueles que representam nossos valores, crenças e ideais. Não obstante, ainda que haja enorme a pluralidade em nossa sociedade, nem todos os grupos sociais se veem representados na política. Nesse contexto se encontram as mulheres, que fazem parte das minorias (minorias empregada em sua acepção sociológica), embora sejam maioria numérica (segundo o IBGE, as mulheres são quase 52% da população). Ainda assim, figuram como minoria (minoria aqui numérica) nas casas políticas.

A verdade é que o espaço da política ainda é uma casa de homens. Segundo dados do TSE, apenas cerca de 15% das cadeiras da Câmara dos Deputados e 12% das do Senado são ocupadas por mulheres (em um país onde mais de metade das pessoas é mulher, repita-se!). Esses índices são menores do que os do Afeganistão (27%), para se dimensionar o tamanho da nossa falta de representatividade, que persiste a despeito da existência da cota eleitoral, que obriga os partidos políticos a reservar 30% das vagas para um gênero (na nossa realidade, o feminino) e 70% para o outro, levando-se em conta o número de candidatos efetivamente registrados, com vistas a assegurar tanto a participação de um quanto de outro gênero.

Diante desse contexto, Márcia Tiburi questiona: “Como é possível que, mesmo que representem mais da metade da população mundial, as mulheres estejam tão longe da política como instância de decisão sobre a sociedade?” (“Feminismo em comum”, 2018, página 93). A questão aqui é que o papel social tradicionalmente imposto às mulheres as afasta da política.

Historicamente, o espaço público sempre foi dos homens, cabendo às mulheres o espaço do lar e dos cuidados com a família. Como nos ensina Soraia da Rosa Mendes, “o patriarcado manifesta-se de modo a institucionalizar o domínio masculino que se estende a toda a sociedade, garantindo que os homens assumam os espaços públicos de poder, e que as mulheres sejam relegadas ao privado” (“Processo Penal Feminista”, 2020, página 92). Assim, ainda hoje as mulheres praticamente não ocupam espaços de expressão na sociedade. E quando se imiscuem nessa seara, não são reconhecidas como iguais, decorrendo daí o fato de que a dignidade delas é o principal alvo de ataques no âmbito da violência política de gênero.

A violência política de gênero é uma espécie de reação (desesperada) daqueles que se consideram legitimados exclusivos a estarem naquela posição de poder. Vale lembrar que, no Brasil, as mulheres só tiveram reconhecido seu direito fundamental de votar em 1934. Sim, há menos de um século. Há, pois, muito o que evoluir.

Ainda que sejamos a favor do Direito Penal mínimo, pensamos que a criminalização veio em boa hora. Temos agora meio e oportunidade de discutir o tema, de lançar luzes sobre a desigualdade e a ausência de representatividade das mulheres no cenário político brasileiro. Relevante pensar que a violência e a desigualdade conspiram sorrateiramente contra a democracia, tendendo a enfraquecê-la.

Passemos agora à análise da violência política de gênero sob o aspecto penal, ou seja, do tipo penal previsto no artigo 326-B do Código Eleitoral.

Trata-se de crime punido a título de dolo, sendo exigido o especial fim de agir consistente em impedir ou dificultar a campanha eleitoral ou o desempenho do mandato eletivo de uma mulher. Mas se trata de crime formal, visto que se consuma sem que essa finalidade específica seja alcançada. Basta que se pratique alguma das condutas previstas no tipo penal.

O crime é comum, no sentido de que pode ser cometido por qualquer pessoa, inclusive mulheres. A vítima principal é a sociedade (crime vago), mas a mulher contra quem as condutas são dirigidas (candidata ou detentora de mandato) também é considerada vítima (vítima secundária). Vale aqui insistir na nossa já conhecida posição no sentido de que as pessoas transgênero femininas são mulheres para fins de direito. Ressalte-se que o sujeito passivo deve ser a mulher detentora de mandato eletivo ou candidata a cargo eletivo, não se incluindo a pré-candidata, como já decidido pelo TSE, a condição de candidato somente se obtém a partir da formalização do pedido de registro de candidatura. Também não há se falar nesse tipo penal quando estivermos diante de suplente de candidata, vez que esta não é detentora de mandato eletivo.

Na figura simples, a pena cominada (de um a quatro anos) inclui o crime entre os de médio potencial ofensivo, afastando a possibilidade de prisão preventiva, por exemplo. Porém, o acordo de não persecução penal fica vedado por força do disposto no artigo 28-A do Código de Processo Penal (que não admite a medida nos casos de crimes praticados no âmbito de violência doméstica ou familiar, ou praticados contra a mulher por razões da condição de sexo feminino).

A ação penal é pública incondicionada, devendo a persecução penal ser inaugurada de ofício.

O bem jurídico tutelado é a higidez do processo eleitoral, a lisura das eleições e a regularidade do exercício do mandato eletivo, além, é claro, da incolumidade da saúde psicológica da mulher.

Feitas tais considerações, importante destacar que a violência de gênero na política sempre esteve a ainda está muito presente na nossa sociedade e acaba por afastar cada vez mais a mulher da vida política. Estando afastada da vida política, a mulher perde representatividade e, por conseguinte, perde direitos. E talvez seja esse o objetivo: tirar a mulher dos espaços de poder.

A fim de evitar que sejam tolhidos os direitos das mulheres, é necessário que se leve ao conhecimento das autoridades os casos de violência, seja por meio de atendimento pessoal, seja por meio eletrônico, seja pelo canal mais conhecido para se denunciar a violência contra a mulher: a Central de Atendimento à Mulher (Disque 180).

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