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OPINIÃO Audiência de custódia deve ser feita por delegado de polícia

20 de dezembro de 2016

OPINIÃO

Por Francisco Sannini Neto e Henrique Hoffmann Monteiro de Castro

Recentemente foi implementada no Brasil a famigerada audiência de custódia, por meio da Resolução 213/15 do Conselho Nacional de Justiça, com o desiderato de combater ilegalidades e a superlotação carcerária.[1]

O amparo legal da medida se encontra na Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de São Jose da Costa Rica), tratado internacional com status hierárquico supralegal:[2]

Direito à Liberdade Pessoal

Art. 7.5. Toda pessoa detida ou retida deve ser conduzida, sem demora, à presença de um juiz ou outra autoridade autorizada pela lei a exercer funções judiciais e tem direito a ser julgada dentro de um prazo razoável ou a ser posta em liberdade, sem prejuízo de que prossiga o processo.

Dispositivo semelhante encontra-se plasmado no artigo 9.3 do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos.

Nota-se que o investigado deve ser sempre levado à presença de autoridade estatal legitimada a decidir acerca da legalidade da detenção ou retenção, que pode ser o “juiz ou outra autoridade autorizada pela lei a exercer funções judiciais”. O tratado internacional sabiamente outorgou a presidência da audiência de apresentação não exclusivamente ao magistrado por ter ciência das dificuldades estruturais de o Judiciário analisar imediatamente a legalidade de toda e qualquer prisão e captura em razão da suposta prática de crime.

Para saber quem é esta outra autoridade além do juiz, vale consulta a precedente da Corte Interamericana de Direitos Humanos:

Este Tribunal considera que, para satisfazer a garantia estabelecida no artigo 7.5 da Convenção em matéria migratória, a legislação interna deve assegurar que o funcionário autorizado pela lei para exercer funções jurisdicionais cumpra as características de imparcialidade e independência que deve reger todo órgão encarregado de determinar direitos e obrigações das pessoas. Nesse sentido, o Tribunal já estabeleceu que ditas características não só devem corresponder aos órgãos estritamente jurisdicionais, senão que as disposições do artigo 8.1 da Convenção se aplicam também às decisões de órgãos administrativos. Toda vez que em relação a essa garantia corresponder ao funcionário a tarefa de prevenir ou fazer cessar as detenções ilegais ou arbitrárias, é imprescindível que dito funcionário esteja facultado a colocar em liberdade a pessoa se sua detenção for ilegal ou arbitrária.[3]

Ideia semelhante é encontrada nas regras mínimas padrão das nações unidas para a administração da justiça da criança e do adolescente (Regras de Pequim – Resolução 40/33 da ONU):

10.2 Um juiz, oficial ou organismo competente deve, sem demora, considerar a liberação. (…)

A questão da liberação (Regra 10.2) deve ser levada em consideração sem demora por um juiz ou outro oficial competente. Oficial é qualquer pessoa ou instituição no sentido mais amplo do termo, incluindo (…) autoridades policiais.

Logo, a autoridade não precisa ser jurisdicional, podendo perfeitamente ser administrativa. Pudesse apenas o juiz presidir a audiência de apresentação do preso, a redação do tratado internacional teria parado na “presença de um juiz”, sem prosseguir “ou outra autoridade autorizada pela lei a exercer funções judiciais”. Não se desconhece a jurisprudência negando ser o Ministério Público esta outra autoridade,[4] tanto por ser parte, quanto por não ter poder de conceder liberdade, objeções que não se aplicam ao delegado de polícia (que não é parte e tem poder liberatório). Ademais, os julgados analisaram sistema jurídico que, diferentemente do Brasil, não possui a autoridade de Polícia Judiciária, cargo pertencente a carreira jurídica e responsável pelo primeiro controle de legalidade da investigação criminal (realizado em seguida novamente pela autoridade judicial).

Além disso, esse funcionário precisa ser imparcial e independente, tal qual o delegado de polícia. Tanto porque não possui qualquer interesse no processo posterior, compromissado apenas com a busca de uma verdade possível dentro da investigação criminal, produzindo, não raro, provas e elementos de informações que favoreçam o próprio investigado. Quanto porque, em razão de sua liberdade para formular a análise técnico-jurídica do fato (artigo 2º, §6º da Lei 12.830/13), possui autonomia para prender ou deixar de prender alguém, livre de requisição de superior hierárquico ou de outra autoridade.[5] Como explica a doutrina:

O livre convencimento técnico-jurídico do delegado de polícia deriva do fato de o inquérito policial ser um procedimento discricionário (CPP, artigo 14). A isenção e imparcialidade, por sua vez, são consectários lógicos dos princípios da impessoalidade e moralidade, previstos expressamente no artigo 37, caput da Constituição Federal.[6]

Em adição, essa autoridade deve ter o poder de colocar o preso em liberdade em casos de ilegalidade, missão atribuída não apenas ao juiz, mas também ao delegado de polícia. Claro que somente o juiz pode analisar de maneira irrestrita a colocação em liberdade em prisões legais, pois a concessão de liberdade provisória pelo delegado de polícia limita-se à fiança em crimes cuja pena máxima não ultrapassa quatro anos (artigo 322 do CPP). Todavia, o poder de colocação em liberdade exigido da autoridade é quanto a prisões ilegais e arbitrárias. Nestas é que se mostra imprescindível o contato visual com o preso, para averiguar sua integridade física e tomar providências ainda no calor dos fatos. Ora, sabe-se que o delegado pode (e deve) colocar em liberdade o indivíduo preso ilegalmente (artigo 304, §1º do CPP), seja em razão de atipicidade formal ou material, de ilicitude de provas, de insuficiência de elementos de convicção ou de inexistência de estado de flagrância. Nesses casos, a autoridade de Polícia Judiciária cessará prontamente a prisão ilegal e restituirá imediatamente a liberdade ao conduzido. Lado outro, a concessão de liberdade por não ser a prisão necessária, decretando qualquer medida cautelar diversa da prisão, é poder atribuído ao juiz; não demanda a presença física do preso, apesar de exigir manifestação rápida, daí a previsão legal para a remessa do caso ao magistrado para esse fim em até 24 horas (artigos 306, §1º e 310 do CPP). Isto é, analisar se estão ou não presentes o fumus comissi delicti e o periculum libertatis não exige contato visual com o preso. Destarte, a limitação de concessão de liberdade provisória pelo delegado de polícia em prisões legais não é relevante para esta discussão.

Com efeito, o Pacto exige a apresentação à autoridade de qualquer pessoa detida ou retida, o que vai muito além das hipóteses de prisão em flagrante. Não apenas a pessoa presa em flagrante, mas também qualquer pessoa retida (capturada) e privada de sua liberdade momentaneamente deve ser conduzida coercitivamente à presença da autoridade, para análise de eventual ilegalidade e imediata devolução do direito de ir e vir em caso de arbitrariedade. Vingasse a leitura de que só o juiz é tal autoridade, deveria o Judiciário analisar a legalidade de toda e qualquer captura, e não somente das prisões em flagrante.

Isso significa que nosso ordenamento jurídico em momento algum violou a referida Convenção, uma vez que toda pessoa presa é apresentada imediatamente ao delegado de polícia (artigo 304 do CPP), responsável pela primeira análise acerca da legalidade da prisão e pela integral observância aos direitos fundamentais do preso, cabendo em seguida ao juiz realizar novo filtro sobre esses aspectos e ainda verificar a necessidade da manutenção da prisão ou sua conversão em outra medida cautelar, num sistema de dupla cautelaridade [7]. Daí a observação da doutrina:

Viola Direitos Humanos a limitação da liberdade pelo delegado.

Ninguém quer ir de camburão falar com o juiz se o delegado já tiver condições de conceder um direito de liberdade, que não está sob o monopólio da jurisdição, mas parece que está sob o monopólio da vaidade.[8]

No mesmo sentido a jurisprudência de lavra do professor Guilherme de Souza Nucci:

Quanto à afirmada ilegalidade da prisão em flagrante, ante a ausência de imediata apresentação dos pacientes ao Juiz de Direito, entendo inexistir qualquer ofensa aos tratados internacionais de Direitos Humanos. Isto porque, conforme dispõe o artigo 7º, 5, da Convenção Americana de Direitos Humanos, toda pessoa presa, detida ou retida deve ser conduzida, sem demora, à presença de um juiz ou outra autoridade autorizada por lei a exercer funções judiciais. No cenário jurídico brasileiro, embora o Delegado de Polícia não integre o Poder Judiciário, é certo que a Lei atribui a. Esta autoridade a função de receber e ratificar a ordem de prisão em flagrante. Assim, in concreto, os pacientes foram devidamente apresentados ao Delegado, não se havendo falar em relaxamento da prisão. Não bastasse, em 24 horas, o juiz analisa o auto de prisão em flagrante.[9]

Nesse panorama, nenhum espanto causa afirmar que o delegado de polícia é autoridade autorizada pela lei a exercer funções judiciais. Com isso não se está a dizer, obviamente, que possui os mesmos poderes que o juiz; as funções são distintas. Mas apenas que o CPP faculta à autoridade de Polícia Judiciária a tomada de certas decisões tipicamente judiciais, restritivas da liberdade individual, como decretação da prisão em flagrante e de medida cautelar de liberdade provisória mediante fiança (artigos 304 e 322 do CPP). Até porque, fosse a outra autoridade o próprio juiz, não faria sentido o tratado internacional ter diferenciado os atores jurídicos em sua redação.

Diferentemente de outros países, nosso sistema penal dispõe de uma autoridade com formação jurídica na condução da fase pré-processual da persecução penal, o que, inegavelmente, constitui um enorme avanço em comparação com outros modelos. A sistemática adotada no Brasil inclusive é mais consentânea com a previsão contida no Pacto, haja vista que o preso é apresentado imediatamente a uma autoridade Estatal, o que é mais garantista do que as 24 horas sugeridas no documento legal.

E nem se fale que a audiência de custódia perante o magistrado seria devida em virtude de previsão constitucional, pois o artigo 5°, LXII da Constituição estabelece que a comunicação da prisão de qualquer pessoa seja feita ao Juiz competente, o que sempre foi feito.

Judicializar a audiência de apresentação, além de juridicamente dispensável e não ser panaceia alguma para a superlotação carcerária, ignora a realidade fática de escassez de recursos públicos, retirando juízes, promotores e defensores de audiências de instrução e tornando ainda mais moroso o sistema judicial brasileiro. Como se não bastasse, prejudica a segurança pública em razão do deslocamento de policiais que deixam de prevenir e reprimir crimes. Ou seja, ao duplicar uma garantia já existente (apresentação do preso incontinenti a uma autoridade estatal capaz de deliberar sobre a legalidade da captura) por meio da adoção do meio menos suave, direitos alheios estão sendo sacrificados desnecessariamente, o que viola o postulado da proporcionalidade.[10]

Levar adiante planos inexequíveis só poderia culminar em absurdos, como a situação do Judiciário de São Paulo, que não realiza tal audiência em finais de semana e no recesso de final de ano,[11] criando uma modalidade de direito fundamental vigente apenas em dias úteis, verdadeira audiência de custódia para inglês ver que materializa o jeitinho brasileiro.

Não se pode olvidar que o delegado de polícia é o primeiro garantidor da legalidade e da justiça, estando à disposição da sociedade durante 24 horas e tendo o dever de zelar pelos direitos e garantias fundamentais de toda pessoa detida ou retida. Razão pela qual a audiência de apresentação pode e deve, pela leitura do arcabouço legal, efetivar-se perante a autoridade de Polícia Judiciária. Sendo desejável também, de lege ferenda, a ampliação do seu poder cautelar.[12]

Provavelmente considerando tudo isso é que a própria Associação Nacional dos Magistrados Estaduais se posicionou contra a Resolução 213/15 do CNJ.[13] Com razão alertava Georges Ripert que, quando o Direito ignora a realidade, a realidade se vinga ignorando o Direito.


1 Especialmente face ao estado de coisas inconstitucional vigente no Brasil, como reconhecido pelo STF na ADPF 347.

2 STF, Tribunal Pleno, RE 466.343, Rel. Min. Cezar Peluso, DJe 05/06/2009.

3 CIDH, Caso Velez Loor vs Panamá, Sentença de 23/11/2010. Ainda que o caso verse sobre prisão administrativa, a garantia contra custódia ilegal é substancialmente a mesma, não interessando se administrativa ou processual penal.

4 CIDH, Caso Chaparro Alvarez y Lapo Íñiquez vc Equador, Sentença de 21/11/2007; Caso Acosta Calderón vs Equador, Sentença de 24/06/2005; Caso Tibi vs Equador, Sentença de 07/09/2004.

5 STF, HC 115.015, Rel. Min. Teori Zavascki, DJ 27/08/2013; STJ, RHC 47.984, Rel. Min. Jorge Mussi, DJ 04/11/2014.

6 LIMA, Renato Brasileiro de. Legislação criminal especial comentada. Salvador: Juspodivm, 2014, p. 180.

7 BARBOSA, Ruchester Marreiros. Audiência de Custódia (Garantia) e o Sistema da Dupla Cautelaridade Como Direito Humano Fundamental. In: DELGADO, Ana Paula Teixeira; MELLO, Cleyson de Moraes; PACHECO, Nívea Maria Dutra (Org.) As Novas Fronteiras do Direito. Estudos Interdisciplinares em Homenagem ao Professor Francisco de Assis Maciel Tavares. Editar: Juiz de Fora, 2015, p. 176 e 177.

8 BARBOSA, Ruchester Marreiros. Delegado pode ser primeiro filtro antes de audiências de custódia. Revista Consultor Jurídico, jan. 2016. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2016-jan-12/academia-policia-delegado-primeiro-filtro-antes-audiencias-custodia. Acesso em: 02 dez. 2016.

9 TJSP, HC 2016152-70.2015.8.26.0000, Rel. Des. Guilherme de Souza Nucci, DJ 12/05/2015. No mesmo sentido: TJSP, HC 2198503-45.2014.8.26.000, Rel. Des. Diniz Fernando, DJ 26/01/2015.

10 ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 589-591.

11 Comunicado Conjunto TJSP 2340/2016, DP 16/12/2016.

12 CASTRO, Henrique Hoffmann Monteiro de. Poder cautelar do delegado de polícia e medidas protetivas de urgência. In: ZANOTTI, Bruno Taufner; SANTOS, Cleopas Isaías (Org.). Temas Avançados de Polícia Judiciária. Salvador: Juspodivm, 2016, p. 277-292.

[13] Ajuizou a Ação Direta de Inconstitucionalidade 5448 perante o STF e o Procedimento de Controle Administrativo 0000006-75.2016.2.00.0000 perante o CNJ.

Francisco Sannini Neto é delegado de polícia do Estado de São Paulo, mestre em Direito pela UNISAL, professor da graduação e da pós-graduação na UNISAL, e professor concursado da Academia de Polícia Civil de São Paulo.

 é delegado de Polícia Civil do Paraná, mestrando em Direito pela UENP. Professor da Escola da Magistratura do Paraná, da Escola do Ministério Público do Paraná, da Escola Superior de Polícia Civil do Paraná, além de cursos preparatórios e de pós-graduação. Coautor do livro Investigação Criminal pela Polícia Judiciária. Redes sociais: @profhenriqueh

   Revista Consultor Jurídico, 20 de dezembro de 2016, 11h32

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